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  Como os EUA reduziram a criminalidade?

Data: 13/02/2015

 

 

Como os EUA reduziram a criminalidade?

Publicado por Luiz Flávio Gomes* em 10/02/2015 no JusBrasil e Inst. Avante Brasil

 

A criminalidade nos EUA cresceu assustadoramente nos anos 60/70 e atingiu seu apogeu nos anos 80. O declínio começou a partir de 1990: os índices de assassinatos e roubos (assaltos) caíram pela metade (ver Erik Eckholm, The New York Times International Wekly – Folha, 7/2/15). Nova York, que possui um dos menores índices de encarceramento dos EUA, é uma das cidades que mais reduziram a criminalidade: ela registrou apenas 328 homicídios em 2014, contra 2.245 em 1990 (redução de 85%: ver Adam Gopnik, em Revista Jurídica de la Universidad de Palermo, año 13, n. 1, novembro/2012, tradução de Juan F. González Bertomeu e colaboradores). Depois de 20 anos da grande e bilionária reforma penal de Bill Clinton (de 1994), continua a polêmica sobre as causas da redução da criminalidade nos EUA. Seria o encarceramento massivo? Nos anos 80, eram 220 presos para cada 100 mil pessoas; esse número pulou para 730 em 2010. Indaga-se: era mesmo necessário esse drástico aumento no encarceramento? Quais fatores mais contribuíram para a diminuição do crime?

A polêmica é imensa, mas existem alguns consensos (ver Erik Eckholm, citado): (1) fechamento dos mercados de drogas a céu aberto (com a consequente redução dos tiroteios); (2) revolução no policiamento (concentração nos “pontos quentes”, ainda que fossem um ou poucos quarteirões); (3) policiamento “intensivo” preventivo (blitz contínuas em toda população: “os pobres nesse caso são os que mais sofrem, mas também os que mais ganham”); (4) o exagerado número de condenações por drogas e armas teve papel bastante modesto; (5) o grande encarceramento foi relevante num período, mas depois foi perdendo sua importância para a redução dos crimes (posto que afeta desproporcionalmente algumas minorias: negros, hispânicos e pobres, que são condenados a longas penas, inclusive por crimes menores; o encarceramento dos negros é sete vezes maior que a dos brancos); (6) envelhecimento da população; (7) baixos índices de inflação. A esses fatores cabe agregar: (8) o saneamento e o controle rígido da polícia (evitando ao máximo a corrupção); (9) a melhoria visível da estrutura e do preparo do policial, bem remunerado (e mesmo assim muitos desvios ainda acontecem). A efetiva atuação da polícia se transformou em (10) alto grau de certeza do castigo (quase 70% dos homicídios são devidamente apurados e punidos). Muitos desses fatores também se fizeram presentes em vários países. A baixa da criminalidade desde meados de 90 se deu, assim, em várias partes do mundo (Europa, por exemplo, Canadá etc.).

Como os EUA reduziram a criminalidade

A queda dos crimes, ademais, coincidiu com o declínio (descompressão) de vários problemas sociais como (11) a gravidez na adolescência e a (12) delinquência juvenil (fortes, aqui, foram a cultura e o sistema judicial). Quando os jovens crescem num ambiente mais seguro, eles se comportam de maneira mais responsável (J. Travis). Qual o consenso em 2015? O encarceramento massivo foi longe demais (republicanos e democratas estão reconhecendo isso). O enigma da redução da criminalidade (nos EUA) não encontra explicação plausível em teorias simplistas (muito menos simplificadoras e pior ainda nas simplórias, que tangenciam o senso comum vingativo). Foram intensas as medidas de prevenção secundária (obstáculos ao cometimento do crime), mas não podem ser descartadas para o futuro as de natureza primária (mudanças socioeconômicas), tais como: (13) o incremento do policiamento comunitário (aproximando-se o policial da comunidade: é preciso superar o abismo que separa as forças da lei das minorias sociais); (14) que são relevantes o enriquecimento da primeira infância, (15) a expansão do tratamento dos drogados e (16) mais serviços de saúde mental (ver Erik Eckholm, citado).

O encarceramento massivo seria responsável por uma baixa diminuição dos delitos (algo em torno de 10%) e mesmo assim a um custo exorbitante: o dinheiro gasto com prisões aumentou seis vezes mais que o sistema universitário (educação superior); fala-se ainda na despersonalização do condenado, no teor vingativo da pena bem como no enriquecimento das empresas que exploram mercadologicamente os presídios (privatização dos presídios). A falência da reabilitação criminal (desenvolvida no norte dos EUA, sobretudo a partir da prisão de Filadélfia) levou muitos a concluírem que nada funciona (nothing Works, disse Martinson). Daí o conservadorismo encarcerador.

 

Para o criminólogo Franklin Zimring (A cidade que se tornou segura, 2012, em Gopnik, citado: 155), a grande redução da criminalidade não decorreu da resolução das patologias profundas que obsessionam a direita (encarceramento massivo dos superpredadores, redução das mães solteiras, o fim da cultura do bem-estar social) ou a esquerda (injustiça social, discriminação, pobreza); nem tampouco da generalização do aborto, nem de mudanças radicais na situação econômica do povo, nem alteração étnica, nem na alteração da educação, nem na tolerância zero: foram pequenos atos de engenharia social desenvolvidos para impedir o delito que funcionaram (mais policiamento nos lugares “quentes”; não prisões alopradas de pequenos delitos nos lugares seguros); blitz generalizada (“os pobres pagaram mais, mas ganharam mais”) etc. O ato delitivo é uma questão de oportunidade, seja para os ricos, seja para os pobres (quanto mais obstáculos, menos delitos). Muita prevenção e alta certeza do castigo (frente aos delinquentes, sejam marginalizados, sejam os de colarinho branco). Sem alterar suas profundas patologias sociais, os EUA conseguiram diminuir a criminalidade.

Por que tanta diferença entre os EUA e o Brasil? Por que eles conseguiram reduzir a criminalidade, enquanto nossos números só aumentam? A única coincidência entre os dois países reside no encarceramento massivo (que tem pouca densidade na diminuição do crime, como vimos). No mais, somos em tudo diferentes. Vejamos: (1) baixo controle do tráfico de drogas e das armas (encarceramento massivo do pequeno traficante, não dos “chefões”); (2) ausência de mapeamento detalhado dos “pontos quentes” (inexistência, em consequência, de um policiamento ostensivo e continuado nesses lugares); (3) inexistência de um policiamento “intensivo preventivo”; (4) ausência do império da lei (alta taxa de impunidade, sobretudo em razão da baixíssima capacidade investigativa do Estado); (5) encarceramento massivo aloprado (sem critério de justiça: prisão de gente não violenta, deixando os violentos escapar); (6) população ainda muito jovem; (7) alta e descontrolada inflação; (8) ausência de um profundo saneamento na polícia (que protagoniza altíssimo índice de corrupção e de violência); (9) precariedade estrutural da polícia e do policial (destacando-se sua baixa remuneração); (10) alto índice de gravidez na adolescência (em razão da precaríssima educação pública); (11) expressiva delinquência juvenil (sem nenhum indicador de recuperação do jovem); (12) ausência absoluta de policiamento comunitário: (13) inexistência de programas tutelares em favor de primeira infância; (14) ausência quase absoluta do Estado no tratamento dos drogados e (15) precaríssimos serviços de saúde mental. Somos o oposto dos EUA.

O que o Brasil vem fazendo para enfrentar a criminalidade? Em termos de prevenção primária (raízes socioeconômica do problema) praticamente nada (a melhora nos indicadores sociais dos anos 2003/2010 não foi suficiente nem sequer para mudar a ridícula e vergonhosa posição do Brasil no IDH); no que diz respeito à prevenção secundária (obstáculos ao cometimento do crime) é deplorável a atuação do poder público (que é reativo, não preventivo; chega sempre depois que a vida já foi destruída, que o carro foi roubado etc.). A certeza do castigo, de outro lado, por aqui, é uma quimera. Que restam? Apenas duas iniciativas que fracassaram retumbantemente. São elas: (a) edição de várias leis penais mais duras e (b) encarceramento massivo aloprado de uma classe social (sem critérios de justiça). De 1940 a 2014 editamos 154 leis penais (ou seja, as leis penais foram reformadas 154 vezes, das quais 75% são leis mais severas) e a criminalidade não diminuiu (veja nosso livro Populismo penal legislativo, no prelo). A população carcerária de 1990 a junho de 2013 cresceu 507% (passamos de 90 mil para 574 mil presos). Apesar de tantas prisões (muito além dos padrões internacionais), nenhum crime diminuiu nesse período no Brasil.

O encarceramento massivo, consequentemente, não constitui razão suficiente para reduzir (ou reduzir drasticamente) a criminalidade. Pode ser que tenha efeito impeditivo do aumento dela. Mas sobre isso não temos estatísticas. Nunca em nenhum outro momento histórico se fez uso tão intenso da prisão para fins de controle social (racial e étnico). De quem? Do jovem negro ou pardo (61,7% dos presos) ou branco pobre (35,3%), analfabeto ou semianalfabeto (86,5%). Do total de presos, 41%, ademais, são provisórios (sem sentença). É patente o abuso da prisão cautelar contra o grupo social referido. A política de prevenção do crime no Brasil é vergonhosamente ridícula quando comparada com a dos EUA. Eles reduziram seus crimes pela metade; no Brasil os crimes vão se duplicando ou triplicando em pouco tempo. Nada do que acontece no Brasil na área criminal é por acaso.

 

 

* Jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil (membro do MCCE).

 




 

 

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