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  ABSTENÇÕES, VOTOS NULOS E EM BRANCO

Data: 31/08/2014

 

 

ABSTENÇÕES, VOTOS NULOS E EM BRANCO

Philippe Guédon

 

            Alegra-me ouvir e ler sobre as preocupações éticas da Candidata Marina Silva, por estarem elas usualmente bem afastadas da cena política. Aplaudi in pectore a sua declaração sobre recusar-se, se eleita, a ser candidata à reeleição, abolindo em poucas palavras uma das fontes mais generosas a irrigar a corrupção entre nós; e constato, com alegria, que não arquivou as suas convicções sobre a oportunidade do voto avulso, sendo a primeira política de alto nível a tratar dos males da “partitocracia” no Brasil.

            Sem pretender ser mais do que um amador trapalhão a cuidar de temas constitucionais, percebo uma completa incompatibilidade entre o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal e o conjunto de nossa legislação eleitoral. Ou nada entendi, o que bem pode ser o caso, ou a excessiva esperteza transformou alhos em bugalhos.

            Cito o parágrafo que é a minha paixão: “Todo o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Porém, logo a seguir, o texto da própria Constituição, as leis (dos partidos, nº 9096, e eleitoral, nº 9504), e as Resoluções do TSE, desenharam um quadro que coloca aqueles de quem emanaria todo o poder em papel subalterno, compulsório e sujeito a penalidades. Já os partidos passaram a reis da cocada preta, assumiram o poder real que era do povo, e ainda por cima beneficiam de um estranho direito de reger-se por normas internas, ditas em idioma de eruditos interna corporis, nas quais ninguém pode dar palpite. Deu no que deu, porque assim o quiseram e permitiram.

            Aos meus cansados olhos, a nossa legislação eleitoral não faz o menor sentido. Vá que seja “ranzinzice”; nesse caso, algum leitor de boa vontade me recolocará no caminho certo do redil, entre as outras boas ovelhas obedientes. Sugiro que leiamos três verbetes do “Glossário Eleitoral” editado há pouco pelo Tribunal Superior Eleitoral, encontradiço na internet. Para maior facilidade, vou transcrever o que lá me foi dado ler, e que só não me pareceu absurdo por ser produto de Colegiado que devemos todos respeitar.

            “Abstenção: não participação do eleitor no ato do voto. O índice de abstenção eleitoral é calculado com o percentual de eleitores que, tendo direito, não se apresentaram às urnas. É diferente dos casos em que o eleitor, apresentando-se, vota em branco ou anula o voto”.

            “Voto em branco: aquele em que o eleitor não manifesta preferência por nenhum dos candidatos”. Por achar sumária a definição, e o Glossário oferecer a oportunidade de aprofundar o conceito, acrescento a seguinte passagem: “(...) contam-se como válidos apenas os votos dados a candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias”.

            “Voto nulo: é como se não existisse, não é válido para fim algum. Nem mesmo para determinar o quociente eleitoral da circunscrição”.

            Os meus botões, interlocutores frequentes, concordam em achar que estamos a anos-luz do parágrafo único ao artigo que abre a Constituição-Cidadã. Pois todo o poder que emana do povo se reduziu a pó de “pirlimpimpim”. O direito de decidir quem poderá ser votado foi transferido dos eleitores (142 milhões) para os partidos (núcleos centrais de, no máximo, umas 50 pessoas em cada uma das 32 siglas, sejam 1.600 pessoas no total). Quem achar que ocorre usurpação de direito, azar o seu, já que nem pode apresentar candidato avulso, nem pode reclamar, pois as abstenções, os votos em branco e os votos nulos correspondem, sob denominações diversas, à uma só e mesma coisa: a nada. Para mim, voto em branco não é voto nulo nem aqui nem no Uzbequistão; é voto de protesto contra todos os candidatos que os partidos lhe empurraram goela abaixo. O eleitor está dizendo que nenhum candidato o satisfaz,  não está anulando o seu voto... Garfaram o seu direito de indicar os seus candidatos, e agora lhe abocanham o direito de dizer que não gostou de nenhum dos impingidos.

Digam-me, então: como é dado a um cidadão-eleitor declarar que os candidatos propostos pelos 1.600 “donos do poder” não correspondem aos seus padrões éticos, administrativos, doutrinários? Pode ficar em casa e pagar multa, pode ir até a urna e anular o seu voto, ou se preferir pode votar em branco, os intérpretes da vontade popular estarão pouco se lixando e entenderão que o coitado apenas não se apresentou, não manifestou preferência ou sequer existiu. O direito de protestar por não poder selecionar candidato , por não poder votar em quem deseja para ser o seu representante, direito expresso pelo qual se abre a Constituição, foi-lhe surrupiado. O povo virou cabrito, que só é bom quando não berra.

Todo o poder emana do povo? Brincadeirinha, pois os representantes são dos partidos, já que o povo nem os escolhe nem pode dizer que os rejeita, pois faça lá o que quiser nunca poderá ver a sua rejeição acolhida nem, pelo menos, levada em conta.

Agora, descer à rua mascarado e sair quebrando tudo, pode. Invadir propriedade privada, pode. Organizar movimento “participativo” chapa-branca financiado pelo Poder, pode. E surrupiar direitos constitucionais, pode também.

            Não imagino melhor fecho do que o bordão de Boris Casoy: “isto é uma vergonha!”.       




 

 

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