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  Os casamentos no zoo partidário

Data: 03/07/2014

 

 

Os casamentos no zoo partidário
 
Diário de Petrópolis, Quinta-feira, 03 de julho de 2014
 
Gaudêncio Torquato
 

Quem poderia imaginar uma serpente tornando-se amiga de um hamster, depois de recusar a comê-lo como refeição? Vivem juntos em um zoológico do Japão. E o bebê hipopótamo Owen, que vive ao lado de uma tartaruga de 130 anos, depois de emparelhados por um terremoto no Oceano Índico?

 

Situações fantásticas no mundo animal chamam a atenção pelo inusitado, a realidade inimaginável que junta, lado a lado, orangotangos com cachorros, estes com galinhas, estas com tigres, culminando com a curiosa história do tigrinho Dema, de 26 dias de idade, que só dorme ao lado de Irma, macaquinha de 5 meses, num hospital de bichos da Indonésia.

 

No mundo dos humanos, então, a fenomenologia no campo dos relacionamentos não fica atrás, plena que é de histórias bonitas e feias, trágicas e felizes ou, simplesmente, risíveis. Mas o que chama a atenção, em nosso clima lúdico de Copa do Mundo, é o casamento, mesmo provisório, dos bichos que povoam o território da política.

 

A expressão (bichos) do reino animal, usada de forma coloquial no mundo dos humanos, particularmente no tratamento entre amigos, cai bem nos partidos políticos tupiniquins. Descaracterizado de sua identidade, apartado de sua índole, identificado como o habitat de seres inodoros e insossos, o zoológico partidário brasileiro abre as portas para deixar ver a liturgia dos casamentos mais exóticos de sua população: cobra d’água com jacaré, elefante com zebra, chipanzé com urubu.

 

A verdade factual, para usar a expressão de Hannah Arendt, impõe-se sobre a verdade racional. Desnaturada de sua essência, a política ajusta-se ao figurino de alcançar “o poder pelo poder”, rompendo os eixos que a edificam como um empreendimento do bem comum, identificando-a como mero instrumento de preservação de forças entre parceiros. Nunca se viu uma colcha eleitoral com tantos retalhos como os de hoje, unindo nos Estados opostos no plano federal, formando alianças entre adversários que se fustigam mutuamente.

 

Quem acredita no argumento de um candidato de que seus partidos podem formar alianças com os contrários nas unidades federativas? Acabam sendo carimbados como “farinha do mesmo saco”, deixando a impressão de que tais casamentos se assemelham à “bacanal”, como já se começa a ouvir.

 

O PSB, de Eduardo Campos, fazendo aliança com os candidatos dos adversários PT e PSDB, no Rio de Janeiro e em São Paulo, desmancha qualquer esforço para situá-lo como alternativa de mudança na política. O caso é esdrúxulo: o ex-governador pernambucano, ele mesmo candidato a presidente, no palanque carioca, ao lado do petista Lindbergh Farias, que apóia a presidente Dilma Rousseff; e, em São Paulo, dando as mãos ao governador Geraldo Alckmin, da floresta tucana comandada pelo senador candidato Aécio Neves.

 

Este é apenas um caso estrambótico entre muitos que se repetem com os mesmos partidos e outros atores nos Estados, a denotar que o campo da política não passa de um deserto de ideias. O político mais demonizado das últimas três décadas foi Paulo Maluf. Quem mais apertou seus calos? O PT, que falava dele horrores. Hoje, são aliados.

 

A falta de coerência na política, visível em ciclos de eleições, resulta da inconsistência doutrinária de uma infinidade de siglas (mais de 30); no precário sistema de coligação ora vigente, que propicia espúrias alianças e resultados enviesados (o eleitor vota em um representante e acaba elegendo outro, que nem sabe quem é); em frouxas regras eleitorais, caracterizadas por sucessivos instrumentos que vão se anulando ou mudando de uma campanha para outra, na esteira da gangorra que caracteriza decisões do Judiciário; enfim, na teia de despolitização e desideologização que cobre o amorfo corpo político.

 

O que leva a representação a desprezar o escopo moral e ético que deveria ser o lume? Ou, ainda, na sequência de perplexidades que povoam o universo político, por que seus habitantes não se conscientizaram da necessidade de alterar as regras do tabuleiro do poder, de forma a emprestar maior racionalidade às operações políticas e dar o devido peso a cada vetor do processo: a identidade dos partidos, o sistema de voto, as campanhas eleitorais, a função da representação, as condições para a governabilidade, a harmonia entre os Poderes?.

 

Há de se admitir que a contemporaneidade política, aqui e alhures, tem se desenvolvido sob a degradação dos mecanismos tradicionais da democracia liberal, a partir do declínio de ideologias e partidos, situação que resultou no desaparecimento dos partidos de massa e consequente emergência de entes amorfos, motivados a agarrar tudo o que for possível, figura que ganhou do cientista político Otto Kirchheimer a denominação de “catch-all parties”.

 

O jogo político menos contrastado ganha reforço com o desvanecimento do antagonismo de classes (coisa que o nosso Lula quer resgatar!), o arrefecimento das bases, a ascensão das estruturas técnicas e burocráticas, o declínio dos parlamentos e a dispersão das oposições.

 

Esse conjunto de questões desloca a política para outros espaços, enquanto novos eixos de poder se formam em defesa de interesses de grupos e entidades intermediárias. Ora, ante a paisagem devastada na seara tradicional da política, não lhe resta alternativa que a de reencontrar o rumo.

 

Para tanto, urge um pacto entre núcleos políticos, forças partidárias e Poderes da República para tampar, de maneira definitiva (não provisória como sempre acontece), os buracos nos vãos das instituições e ajustar as ferramentas da política, tornando-as funcionais, lógicas e capazes de aprimorar as bases do edifício democrático.

 

Se assim for acordado, a atual campanha será a última da era do casamento da raposa com o leão. Slogans bolorentos – “esperança contra o medo, esperança contra o ódio, nós e os outros” – serão enterrados. Sob a lição de Spinoza para se fazer justiça: “atribuir a cada um o que lhe cabe de acordo com as normas do direito”.

 

Jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato




 

 

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