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  A ética do político em ‘House of Cards’

Data: 19/04/2014

A ética do político em ‘House of Cards’

Por Bruno Rebouças em 15/04/2014, Observatório da Imprensa, edição 794

 


Bruno Rebouças é jornalista e mestre em Comunicação e Jornalismo
 A segunda temporada da série da Netflix chegou ao fim e a expectativa dos fãs de Frank Underwood (Kevin Space) – estou entre eles – já visa à terceira temporada da série que trata dos bastidores da política em Washington, capital dos Estados Unidos. No meio desse cenário amplo, há uma junção de fatos e “poderes” que atuam contra ou a favor da sede sanguinária pelo poder que o nosso anti-herói, Francis para os íntimos, alimenta. Dentro desses fatos e poderes, estão o jornalismo, o lobby, instituições do terceiro setor, assessores de imprensa, empresários e qualquer um que possa ajudar ou tentar atrapalhar o deputado da Carolina do Sul.

Democrata, Frank começa a primeira temporada rechaçado pelo presidente eleito para o cargo de secretário de Estado. Ele é o corregedor da Maioria da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos. Isso tudo se passa no primeiro episódio da série e, a partir daí, segue o enredo que visa ao poder mais que ao dinheiro. O time do deputado Underwood é pequeno, mas muito astuto, exercendo o “pragmatismo implacável” que Francis nos ensina a cada passo que galga na história.

O acompanha sua esposa, a atraente e sexy Claire Underwood (Robin Wright), e o seu chefe de gabinete e cão de guardaDoug Stamper (Michael Kelly). Nos primeiros episódios surge a linda jornalista Zoe Barnes (Kate Mara), que sonha com um furo de reportagem para ascender na carreira de repórter política, no jornal The Washington Herald, que na vida real foi comprado e se fundiu ao The Washington Post em 1954, aquele famoso e mítico jornal do caso Watergate, vencedor de 47 prêmios Pulitzer. Uma coincidência de enredo ou um recado implícito da junção imprensa e político, e logo depois, a reafirmação do quarto poder e a vigilância dos outros três?

O novo “garganta profunda”

A junção entre imprensa e poder político sempre aconteceu e se fez necessária. No Brasil, onde a maioria de concessões de radiodifusão pertence a políticos profissionais, fez a imprensa como instituição perder um pouco da sua identidade de vigilante dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como uma guardiã da sociedade e devido a isso, o “título” de quarto poder, por sua função social, e não para exercer poder, embora não constituído. Só que entre a teoria formalizada do quarto poder e a realidade existe um abismo e dentro desse abismo existe a política. Digamos que é necessário para o político usar a imprensa e, para imprensa, também usar o político. Mas a “necessidade” passa a poder quando se sabe um segredo através de um deputado inescrupuloso como Frank Underwood, que, de aliada, pode transformar a encantadora Zoe Barnes em sua dependente e, por que não, em sua futura inimiga?

Após o preâmbulo da série, Underwood busca a parceria com uma jornalista iniciante para começar seu plano de vingança contra o presidente e o secretário de Estado, e pelo poder, claro. Zoe se pergunta por que ela, assim como Carl Bernstein e Bob Woodward perguntam ao “garganta profunda”, em Todos os homens do presidente. Inicia-se uma série de furos de reportagem e a fama ilusória da jornalista ganha os Estados Unidos, como a de Lucien Chardon ganhou Paris, em As ilusões perdidas, de Balzac.

Sem fazer spoilers, fixo a relação Underwood e Zoe Barnes com muitas semelhanças entre os jornalistas Bernstein e Woodward no caso mais famoso do jornalismo exercendo o quarto poder e derrubando o presidente. E não me parece coincidência que o jornal escolhido no roteiro, tenha sido adquirido peloWashington Post, periódico responsável pelas denúncias que derrubaram o presidente republicano Richard Nixon, sobre a acusação de espionar o Partido Democrata em 1975. Infelizmente, a fim de não revelar fatos da série para os que ainda não a viram, para confirmar essa afirmativa você precisará ver House of Cards. Mas há toda uma herança política, investigativa e jornalística no nome do jornal The Washington Herald. Um adversário à altura, para encarar a ética ou a falta de ética de Francis?

Pitada de ironia e sarcasmo

Aristóteles e Platão conceberam o estudo da ética em constante unidade com a política, pois consideravam ambas as ciências voltadas para prática do bem estar social, o que é denominado deeudaimonía, ou seja, vida boa. Maquiavel, em o Príncipe, também concebe a ética de forma inseparável da política, mas de maneira como vemos essa dicotomia hoje: a ética é necessária para o político alcançar seus fins. Sendo assim, acreditava Maquiavel que ela é apenas um depósito de nossas representações.

Para os filósofos gregos, a ética é fundamental para o político alcançar seus fins, levando em conta a virtude que deve acompanhá-lo. Virtude essa, não podemos negar, que Francis detém de sobra, já que ela não pode ser ensinada e parte da ética (ou da falta dela) em busca da prática do bem coletivo. No caso de House of Cards, no bem individual revestido de bem coletivo. Nesse caso, o “pragmatismo implacável”, segundo Frank Underwood, consiste em se fazer o que é necessário, mesmo não sendo o “certo”. Ou, o que você faz sabendo que não se deve fazer, mas que é preciso que se faça.

Se para os antigos, o fim da política era o “bem” e o da ética era a felicidade, Maquiavel ressalta que não é necessário reunir todas as virtudes para exercer a política, apenas aparentar tê-las, o que não exclui a ideia de que a virtude é essencial ao exercício do poder. Porém, o nosso anti-herói possui todas as virtudes para exercer a política como vocação. Mas ele também tem todos os defeitos. Sua crueldade dentro do jogo de xadrez imaginado em sua cabeça se chama “pragmatismo implacável”, e não falta de virtude para o “soberano bem”.

Underwood chama de pragmatismo, o que Maquiavel definiu como: “os fins justificam os meios”. Na política real e em House of Cards, tal frase é muito usada para justificar o uso de métodos ilícitos para alcançar os fins que sejam bons. Tal formulação é meramente ética. Ainda na mesma obra de Maquiavel, há uma passagem que diz: “as violências devem ser feitas todas ao mesmo tempo, a fim de que seu gosto, persistindo menos tempo, ofenda menos”. Na versão underwoodiana seria o mesmo, com uma pitada de ironia e sarcasmo, como lhe é característico: “a estrada para o poder é coberta por hipocrisia... e baixas. Remorso, nunca”. Exerça o “pragmatismo implacável”, faça as “maldades” que se deve, mesmo que não seja o certo.

Características de dominação

Frank ver a política e a ética como conceitos que devem se mexer no tabuleiro, de acordo com a necessidade do jogador. Weber (A política como vocação, 2003) defende a relação entre ética e política passando pelo “o uso legítimo da violência”. Seguindo o pensamento de Maquiavel, Weber aborda também a questão dos meios e dos fins e afirma que a ética deve considerar que há vários casos que o individuo se vê obrigado a recorrer a meios não lícitos e assim perigosos, para alcançar um resultado final bom, mesmo tendo em vista a possibilidade de uma consequência desagradável.

Frank Underwood certamente leu Maquiavel e Weber para formular a frase em meio a uma discussão ameaçadora com um grande empresário da série: “Você pode ter todo o dinheiro do mundo. Mas eu tenho todos os homens de armas (o Exército).”

Vale salientar que Weber acredita que o instrumento decisivo da política é a violência. Underwood também. Para o sociólogo, “o específico dos problemas éticos na área da política reside na relação existente entre ética e violência legítima, de que a associação humana se apresenta como portadora”. Ou seja, sociologicamente, a relação ética e política passam pelo uso da força que o Estado é legítimo em usar, tornando-a normal em tais parâmetros. Nesse sentido, as formas de dominação do homem pelo homem, além de histórica são também naturais.

É dispensável dizer que Francis acredita que a humanidade foi criada para uns exercerem poder sobre outros. Dentro dessas características de dominação, Weber (2003) a divide em três: Tradicional, Carismática e Legal. A dominação Tradicional consiste na crença dos súditos no poder do patriarca ou do príncipe, para usar as palavras do autor. Nesse tipo de dominação, o súdito crê que deve obediência ao senhor por uma virtude; Já a dominação Carismática, intitulada de “dom da graça”, é muito comum em governo de frente popular e no ocidente. Ela tem seus princípios na devoção dos súditos na figura de um líder, através de suas virtudes, seja heroísmo, coragem ou qualquer outra qualidade pessoal; Por último, a dominação Legal que é mais comum em nosso tempo. Esta é baseada na validade do “estatuto legal e da competência funcional baseada em normas racionalmente definidas”, (Weber, 2003: 11). Essa dominação é exercida pelos modernos servidores do Estado e “por todos os detentores do poder” a ela ligada, inclusive o nosso deputado que nesse momento já exerce outro cargo, agora não mais no Legislativo. Para mim, Frank é um líder Carismático e Legal, dentro destes conceitos.

O perfil do anti-herói

Anti-herói é aquele personagem caracterizado por atitudes não muito louváveis, como a do herói tradicional da Disney, por exemplo. Baseado em uma honra e código moral e ético inabaláveis, para o herói os fins não justificam os meios. Para a categoria da moda, o anti-herói carrega consigo atitudes que não tem nem virtude nem vocação de heroísmo, como o egoísmo, a vingança e a vaidade, entre outros. O código de ética e moral de personagens como Frank Underwood ou de Jean Valjean, de ‘Os Miseráveis’ (Victor Hugo) é flexível e até entendível. São mais humanos e próximos aos mortais da vida real. Estes personagens têm o “dom da graça” e você acaba torcendo por eles, por uma espécie de “dominação carismática” que eles e outros exercem sobre nós.

A série House of Cards é baseada no romance de Michael Dobbs, que deu origem à minissérie britânica criada por Andrew Davies, na BBC. O que faz da série um sucesso, que até Barack Obama comentou a ânsia de assistir a segunda temporada, é a força da trama, o enredo e as interpretações dos personagens e seus diálogos, que dão uma profundidade a série, e nos prende em um mundo marcado por mistérios e segredos, hipocrisias, poder, ganância, pragmatismo e estratégia, nos levando aos bastidores “fictícios” ou não da Casa Branca e do Capitólio. Kevin Space exerce as dominações citadas por Weber, executa com precisão os dogmas de Maquiavel e escreve suas próprias epígrafes com humor, ironia e sacarmos.

House of Cards é uma dança de poder. Os políticos o exercem de maneira legítima e constituída. Os seus momentâneos aliados ou inimigos, os jornalistas, também o exercem de maneira não constituída o dito poder ou contrapoder, forçando o mito do Superman (com poderes sobrenaturais e jornalista), ou o fascínio do quarto poder e o caso Watergate. Outros profissionais também flertam e executam o poder pelo poder, na qual tudo é permitido, ganhar é uma regra, perder um fim. Tudo é possível e legítimo, menos o “remorso. Nunca”.

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